Quando as mulheres tomam a palavra na Bíblia
2023-03-24T15:16:43-03:00Roland Meynet, SJ
As narrações das origens às vezes são desconcertantes. Quando o Senhor Deus apresenta ao homem a mulher que tinha acabado de extrair de seu lado, Adão exclama, jogando com as palavras: “Esta, sim, é osso de meus ossos e carne de minha carne. / Ela será chamada ‘mulher’ (’îsha), porque foi tirada do homem (’îsh)” (Gn 2,23).
O leitor compartilha a surpresa de Adão, que enfim encontrou “uma ajuda que lhe corresponda”. Todavia, essa primeira reação não pode resistir por muito tempo a uma mínima reflexão. Antes de tudo, é surpreendente que ele fale da mulher na terceira pessoa do singular: fala dela, mas não a ela. E se se continua a leitura da história do primeiro casal humano até o fim, percebe-se que Adão não dirige a palavra a sua mulher nem mesmo uma vez; e isso, consequentemente, é recíproco. O que Adão vê na mulher que Deus lhe apresenta? Nada mais que o próprio reflexo: “osso de meus ossos e carne de minha carne”. Isso se chama narcisismo. Exclui a diferença e, portanto, a complementaridade¹
Como maravilhar-se, então, se Eva, quando deu à luz o primeiro filho, disse, jogando com o significado do nome “Caim”: “Adquiri um homem com a ajuda de Iahweh” (Gn 4,1)? Esse é um modo para colocar Adão, seu marido, fora do jogo! Não surpreende que o mutismo que caracteriza o primeiro casal se transmita à geração sucessiva. De fato, segundo o texto hebraico, entre os dois irmãos Caim e Abel não é trocada palavra alguma:
¹ Cf. A. WÉNIN, D’Adam à Abraham ou les errances de l’humain. Lecture de Genèse 1,1-12,4, Paris: Cerf, 2007, p. 76-81 (em italiano: Da Adamo ad Abramo o l’errare dell’uomo. Lettura narrativa e antropologica della Genesi. I. Gen 1,1-12,4, Bologna: EDB, 2008).